segunda-feira, 31 de março de 2014

O deferimento Tácito da DIA: Uma tempestade num copo de água?


                   O procedimento administrativo de avaliação ambiental (doravante AIA), é regulado pelo DL 151-B/2013 e visa apurar quais as consequências no meio ambiente de certos projectos públicos e privados que sejam susceptíveis de produzir quaisquer efeitos significativos no meio ambiente. Podemos concluir que desta forma, o AIA vem introduzir nas decisões administrativas um importante factor ambiental. Segundo o artigo 2º,g) do DL151-B/2013, a DIA(Declaração de Impacto Ambiental) é uma "decisão, expressa ou tácita, sobre a viabilidade ambiental de um projecto, em fase de estudo prévio ou anteprojecto ou projecto de execução". É uma declaração emitida no procedimento de AIA sobre a viabilidade da execução do projecto em causa. Este artigo vem desde logo prever a possibilidade de emissão tácita de uma DIA. E é neste aspecto que nos iremos focar.
                Para que o procedimento se finalize, e se possa permitir o acto de licenciamento/autorização do projecto, a DIA tem de ser proferida dentro dos prazos previstos e também comunicada à entidade competente para a autorização, como dispõe o artigo 19º/1. E, logo de seguida, o 19º/2 estabelece que a DIA deve ser emitida no prazo máximo de 100 dias contados a partir da recepção pela entidade de AIA do EIA (Estudo de Impacto Ambiental), sendo esse prazo reduzido para 80 dias nas situações de projectos sujeitos a licenciamento industrial. Uma situação como esta levanta sempre a questão de saber o que aconteceria em situações em que a administração não respeitasse estes prazos. Se a DIA favorável ou favorável condicionada é uma condição de existência do futuro acto de licenciamento de projectos sujeitos a AIA, o que aconteceria quando a administração nada fazia e não havia DIA?
                Se olharmos para o regime do CPA, nos termos dos artigos 108º e 109º, em princípio o silêncio da administração corresponderá a um indeferimento tácito, salvo nos casos previstos (o deferimento tácito é assim um regime excepcional). Tal indeferimento dá a possibilidade ao particular de, nos termos do CPTA, interpor uma acção de condenação da administração à prática do acto devido.
                No entanto, o RAIA vem desde logo prever expressamente no seu artigo 19º/2 uma situação de deferimento tácito como regra geral: o silêncio da administração neste caso corresponde a uma DIA favorável. Passado o prazo máximo para conclusão do procedimento, sem a decisão da DIA ter sido notificada à entidade licenciadora ou competente para autorizar o projecto, a DIA é considerada como tacitamente deferida. Este regime vem consagrar uma "solução de recurso" para situações em que a entidade competente, que deveria ter agido, não cumpre os prazos. Se ela nada faz, e de forma a evitar que o proponente fique infinitamente à espera de uma decisão e impedido de actuar para pôr o seu projecto em marcha, entendeu-se ficcionar um silêncio da administração e considerá-lo como um deferimento tácito. Também se pode ver esta previsão como uma forma de pressionar a administração a decidir dentro dos prazos, sob pena de ver um procedimento avançar sem que tenha sido devidamente analisado. Perante um pedido e decorrido o prazo previsto sem que o órgão responsável se pronuncie, tendo o dever jurídico de o fazer, a lei considera que o pedido está satisfeito, e a DIA é deferida tacitamente.
                A doutrina ambientalista tem discutido intensamente esta situação. Não será que esta previsão vai contra os próprios objectivos do RAIA e da própria DIA? Na verdade não se sabe se terá existido alguma ponderação das consequências que o projecto em causa poderá acartar. Muitas vezes pode nem ter existido qualquer análise. Tal situação até poderia redundar numa situação caricata - uma DIA favorável (tacitamente), mas desfavorável ao ambiente. Então mas todo este procedimento não tem como objectivo máximo a defesa do ambiente? Alguns autores consideram que esta opção é totalmente errada e destituída de fundamento. A entidade responsável pelo licenciamento deve tomar conhecimento de todos os factos relevantes para a sua decisão, através de um procedimento específico, de forma a poder decidir adequadamente sobre a viabilidade de certo projecto. O legislador criou um procedimento específico, complexo, com intervenção de um elevado número de entidades para a avaliar o impacto ambiental do projecto, mas vem por outro lado prever que no silêncio da administração, a DIA (um dos passos mais importante de todo do procedimento) possa ser tacitamente deferida, podendo sê-lo sem ter havido qualquer contacto com o projecto.
                José Figueiredo Dias considera que se abriu aqui a possibilidade de subverter totalmente a intencionalidade do regime legal, devido a uma falta de coerência entre o regime do deferimento tácito e a opção de conceber a DIA como parecer conforme favorável, como uma declaração que só permite uma decisão de licenciamento ou autorização do projecto no caso de ser positiva ou favorável condicionada (tornando impossível o deferimento do licenciamento ou da autorização no caso de ser negativa/desfavorável). Segundo o mesmo, corre-se aqui o risco de por uma negligência da entidade ou mesmo de forma intencional, se permitir a autorização de um projecto que pode ser lesivo do ambiente, que pode acarretar graves perigos ambientais, sem que exista uma qualquer decisão sobre a matéria. 
                A professora Carla Amado Gomes considera que esta opção é contraproducente, se tivermos em conta a lógica de antecipação de impactos ambientais negativos e a sua minimização. A DIA pode assim emergir de uma total ausência de procedimento, ou de um procedimento onde não existiu uma participação, oral ou escrita, ou mesmo implicar a validação de um EIA sem os elementos essenciais, como por exemplo, as medidas de minimização. Considera que esta situação pode encaminhar a entidade licenciadora para uma ponderação em branco, ao remeter a mesma para o EIA apresentado e para os outros elementos referidos no 16º/1 quando disponíveis (19º/4). A autora considera ainda que apesar deste acto estar protegido contra alegações de vícios formais, a sua presença nos momentos de autorização posterior não deve impedir o órgão competente de, invocando uma falta de elementos ponderativos, indeferir o pedido de autorização.
                No entanto este deferimento não significa uma total indiferença em relação às possíveis consequências ecológicas do projecto em causa. No momento em que a entidade licenciadora ou competente para a autorização toma a sua decisão deve ter em consideração não só os problemas sociais e económicos do projecto em causa, mas também os problemas ambientais que ele pode acarretar. Segundo o artigo 19º/4, havendo deferimento tácito, a decisão da entidade licenciadora ou competente para a autorização do projecto deve indicar as razões de facto e direito que a levam a tomar a decisão, e deve ainda ter em consideração o EIA apresentado pelo proponente e outros elementos que estejam disponíveis, como aqueles referidos no 16º/1 (por exemplo, pareceres técnicos, relatório de consulta pública). O professor Vasco Pereira da Silva considera que é dada competência para avaliar e ponderar a dimensão ambiental da actividade proposta à entidade que coordena o procedimento autorizativo global, entidade licenciadora. Tenta aqui salvar-se o interesse ambiental nos casos de deferimento tácito da DIA, onde não existe certeza sobre se os interesses ambientais foram respeitados. Não haverá assim problema em existir uma DIA favorável por deferimento tácito, desde que seja possível a intervenção referida, podendo nesse momento negar-se provimento no processo autorizativo global, se a DIA devesse ter sido considerada desfavorável. De outra forma, se esta entidade não estivesse obrigada a ponderar todos os interesses em jogo (sobretudo os ecológicos), a decisão seria nula, pois estaríamos perante uma violação dos princípios constitucionais ambientais, como o princípio da prevenção ou do desenvolvimento sustentável.
              Segundo o professor Tiago Antunes, a prática mostra que não têm existido DIA´s favoráveis por incumprimento dos prazos estabelecidos. Desta forma, o deferimento tácito não será um problema real, e esta "ameaça" tem feito com que a administração respeite os prazos o que é bastante positivo.Este autor, considera ainda que esta solução do deferimento tácito é comum no panorama jus-ambiental português e que seria estranho que um dos principais regimes nesse campo (RAIA) não prevê-se tal situação.
                Devemos ter porém algumas preocupações:tal opção não é seguida pela jurisprudência europeia, e poderá estar-se a pôr em causa os princípios da prevenção, da imparcialidade ou do desenvolvimento sustentável. Para além disso, e mesmo com a limitação do 19º/4, temos de ter em atenção que deixar a decisão totalmente dependente da entidade licenciadora do procedimento global, sem grandes qualificações técnicas em comparação com a entidade que deveria emitir o DIA, e sobretudo porque em muitas situações pode nem ter acesso a todas as informações necessárias para "dar" uma decisão totalmente esclarecida e fundamentada, o que pode não nos deixar "completamente descansados".
                Finalmente apenas mais uma pequena referência a todo este regime, e que é sublinhada pelo professor Tiago Antunes. O artigo 19º/1 estatui que a DIA deve ser sempre notificada mesmo quando existe deferimento tácito. Para o professor esta situação é um pouco inexplicável- então se a administração não foi suficientemente diligente para praticar o acto que devia dentro do prazo, será então de esperar que o seja agora para notificar que não praticou o acto? E o que terá a administração de notificar? O deferimento tácito não tem substância documental. A única coisa que parece "notificável" será a informação que o prazo previsto no RAIA foi ultrapassado sem que a decisão da DIA tivesse sido dada e que se produziu o efeito legal de considerar a DIA deferida. Temos assim uma notificação meramente informativa, pois os efeitos jurídicos do deferimento tácito acontecem tenha ou não existido notificação. Dessa forma não faria qualquer sentido prevê-lo, e estaria em causa o objectivo de obstar à inércia administrativa, pois à administração bastava continuar sem qualquer actividade (agora sem fazer a notificação), para manter o particular numa posição de expectativa. Não fazia qualquer sentido que se fizesse depender a eficácia do acto tácito de um comportamento notificador da entidade administrativa cuja inacção se pretendia ultrapassar.
                Perante tudo isto, resta-nos tomar uma posição. É certo que por vezes o deferimento da DIA tacitamente pode resultar numa contradição,de termos uma DIA favorável desfavorável ao ambiente, e que dessa forma poderia estar em causa o respeito pelos princípios da prevenção e do desenvolvimento sustentável, e a ponderação de efeitos nefastos para o ambiente. Mas, por outro lado temos de atentar que, por um lado, é a entidade licenciadora que tem sempre a última palavra (apesar das suas menores qualificações) e pode sempre negar a licença/autorização. E para além disso, o objectivo de pressionar a administração a actuar dentro do prazo sob pena de existir um deferimento tácito, tem surtido efeito - não há indícios de qualquer ocorrência de tal situação. E devemos até aqui partilhar a opinião do professor Tiago Antunes de que tanta preocupação doutrinal se tem revelado desproporcionada e que se está de facto a "fazer uma tempestade num copo de água".


Bibliografia:

ANTUNES, Tiago, "Pelos Caminhos Jurídicos do Ambiente: Verdes Textos I", AAFDL, 2014

DIAS, José Eduardo Figueiredo, "O Deferimento Tácito da DIA: mais um repto à alteração do regime vigente" em "Revista CEDOUA"

GOMES, Carla Amado, "Introdução ao Direito do Ambiente", AAFDL, 2ª Edição, 2014

SILVA, Vasco Pereira da, "Verde Cor de Direito - Lições de Direito do Ambiente", Almedina, 2ª edição, 2004


Bruno Dias, 19525.

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