Da dispensa do procedimento de AIA
O
art. 4.º do Regime da Avaliação de Impacte Ambiental (RAIA, Decreto-Lei n.º
151-B/2013 de 31 de Outubro), prevê a possibilidade de dispensa do procedimento
de avaliação de impacte ambiental (AIA), por parte dos ministros competentes (decisão
conjunta do membro do Governo responsável pela pasta do Ambiente e do membro do
Governo responsável pela pasta relacionada com o projecto), em “circunstâncias
excepcionais e devidamente fundamentadas” (n.º 1). Impõe-se saber, por isso, o
que serão “circunstâncias excepcionais”.
Na
doutrina, o Professor Vasco Pereira da Silva tem sido muito crítico desta
disposição normativa, defendendo que “casos excepcionais” podem ser todos,
sendo a letra da lei muito abrangente. O Prof. Vasco Pereira da Silva critica a
norma, argumentando que: esta confere uma grande
amplitude das margens de apreciação e de decisão, ou de discricionariedade, da
Administração; e não existiu uma maior densificação
do conceito de excepcionalidade, estabelecendo critérios para a sua verificação
e remetendo para o juízo das autoridades administrativas, tanto a apreciação de
tais circunstâncias, como a determinação das medidas a adoptar, com as consequentes dificuldades quer para a
tarefa de concretização da lei pela Administração, quer para o seu controlo
pelos Tribunais. O citado autor defende, por isso que, sem ter que se
afastar a discricionariedade, deveriam ter sido detalhadas as circunstâncias e as condições que poderiam dar lugar à dispensa de procedimento.
Ademais, não parecerá razoável que, por iniciativa do proponente, com base num
simples requerimento, ainda que devidamente fundamentado e perante uma situação
excepcional, aquele possa pedir a dispensa do procedimento de AIA. Por essa
razão, o Prof. Vasco Pereira da Silva defende que se deveria exigir sempre ao
proponente, pelo menos, a apresentação de um estudo de impacte ambiental (EIA),
de modo a permitir à Administração estar em melhores condições de tomar uma
decisão acertada, quer quanto à dispensa, quer quanto a eventuais medidas de
salvaguarda ambiental. Ou também
podemos considerar que fará todo o sentido, sob pena de se gerar uma
situação paradoxal, que a dispensa deveria ser feita depois do estudo de AIA,
para que os Ministros tivessem, assim, uma base técnica maior e mais bem
informada em que pudessem assentar essa dispensa. Todavia, ao mesmo tempo,
depois do estudo de AIA também não havia já nada para dispensar!
Posição pertinente é também a da Prof.ª Carla
Amado Gomes, que refere que este subprocedimento constitui um desvio ao
princípio da prevenção (o que levou a uma Comunicação da Comissão Europeia, Clarification of the application of article
2(3) of the EIA directive, de 2006),
enumerando algumas considerações críticas: que a letra do n.º 1 do art. 4.º é demasiado ampla, constituindo uma espécie de
norma habilitante em branco, sendo difícil o controlo do exercício desta competência, sem quaisquer referências
exemplificativas, salvo erro manifesto;
que a desnecessidade de apresentação do EIA, vem contra o princípio de que é o proponente que deve demonstrar a
ausência de impactos relevantes associados ao projecto, remetendo para a
Administração a carga da aferição dos riscos que aquele eventualmente envolve;
a não existência de um momento de
contraditório público, contraria
abertamente a lógica de participação que envolve a AIA; e, por fim, o
parecer da autoridade da AIA no qual se
encontrará a referência a medidas de minimização a adoptar pelo proponente (art.
4.º n.º 4 RAIA), bem como eventuais
formas de avaliação diversas da avaliação de impacto, que não é vinculante para
os membros do Governo que emitirão a decisão de dispensa.
Por último, o Dr. Jorge Pação enuncia uma posição interessante na análise que
faz desta possibilidade de dispensa, invocando o princípio da imparcialidade,
que se assume como critério legal de
controlo de que a decisão foi, apenas e só, tomada tendo como fundamento
interesses juridicamente relevantes e protegidos face ao projecto em causa, e
não outros que fogem à ponderação legalmente exigida e permitida. Tendo em
conta este princípio, nos momentos de
maior discricionariedade, o princípio da imparcialidade deve ser especialmente
preservado. Para além da aplicação desse princípio, destaca a distinção entre actos de condução política e
actos de administração a cargo do Governo, que podem acabar por criar
“interferências” e dificuldades de
diferenciação material entre “governo” ou política e administração.
Poderemos assim concluir, com o auxílio das 3
posição supra referidas, que
estaremos perante 3 grandes vectores que devem ser respeitados para aplicação
do procedimento de dispensa de AIA: o primeiro, é que deverá haver uma maior
densificação dos critérios para a sua aplicação, o que poderá passar, numa
próxima revisão do Regime de Avaliação de Impacte Ambiental, pela transposição
dos critérios enunciados na Comunicação da Comissão Europeia; em segundo, que
os princípios gerais da Administração Pública devem ser sempre respeitados,
como é o caso do Princípio da Imparcialidade, mas também os Princípios da
Proporcionalidade, Adequação e Informação, na medida tomada, que deve ser
sempre fundamentada; por último, a necessidade de que o proponente apresente um
EIA fará todo o sentido, desde que também esteja assegurado o princípio do contraditório
dos interessados a ser tomado em conta na decisão conjunta dos Ministros, salvo
estarmos perante um caso urgente (que poderá dar lugar a uma “dispensa
provisória”?), hipótese em que poderão os interessados ser ouvidos
posteriormente, por se tratar de um requisito essencial de interesse público e
pedra basilar do Direito Administrativo.
Do eventual "condicionamento" na emissão de DIA desfavorável
No regime da AIA, podem ser emitidas
Declarações de Impacte Ambiental (DIA), favoráveis, favoráveis condicionadas e
desfavoráveis. As duas primeiras são competência da Autoridade de AIA,
enquanto que a última é da competência do Ministro do Ambiente (caso a Autoridade
de AIA considere existir fundamento que justifique a emissão de DIA
desfavorável). Ou seja, se a Autoridade de AIA quiser viabilizar o projecto, a
ela caberá emitir uma DIA favorável ou favorável condicionada. Quanto à emissão
de DIA desfavorável, como previsto no art. 16.º n.ºs 7 e 8 do RAIA, tem sido
controvertido na doutrina saber se o Ministro, efectivamente, estará vinculado
à emissão de DIA desfavorável, quando a Autoridade de AIA assim o considere
(por entender que o projecto comportará impactos ambientais negativos, p. ex.).
O Professor Tiago Antunes explica que, quando
“chega” ao Ministro, tratando-se de uma DIA desfavorável, esta “chega” apenas
para este emiti-la desfavoravelmente (pois o Ministro encontra-se vinculado), o
que implica que teremos um subalterno (a Autoridade de AIA), a decidir
previamente ou a condicionar a decisão do Ministro (no fundo, a instrumentalizá-lo).
Poderemos assim ter uma violação do princípio da legalidade da competência
(art. 29.º do CPA), por a prática de um mesmo acto poder pertencer a diferentes
órgãos, consoante o respectivo sentido de decisão. Argumenta por isso o autor, que
esta medida se trata de uma “aberração jurídica”, defendendo que o Ministro não
estará vinculado à proposta da Autoridade de AIA, não estando vinculado às
escolhas dos técnicos/serviços (embora os tenha que ter em conta), podendo
decidir de forma diferente. Conclui o autor que, para além de não ser certo que o Ministro esteja impedido de viabilizar
o projecto, também não é líquido que a competência para a emissão de DIAs favoráveis esteja atribuída em termos exclusivos
à Autoridade de AIA.
O autor extrai ainda, através do artigo 25.º n.º 3 do RAIA que, sendo o
Ministro competente para alterar uma DIA favorável, por maioria de razão também
o será para emitir, se assim o quiser, uma DIA favorável desde o momento
inicial. Enfim, o Ministro nunca ficará obrigado a seguir um parecer
desfavorável dos técnicos/serviços: mesmo que se admita que este não tem
competência para praticar uma DIA favorável, ele poderia sempre decidir não praticar o acto proposto, remetendo o
processo de novo à Autoridade de AIA para que fosse esta a actuar, emitindo uma
DIA favorável.
O Prof. Rui Tavares Lanceiro defende também que, apesar do Ministro apenas ter
competência para emitir a DIA no caso de esta ser desfavorável, este pode
sempre fazer uma apreciação diferente dos
elementos constantes do processo e dos impactes ambientais em causa, emitindo
uma DIA favorável, ou favorável condicionada. Acrescenta ainda que, do
regime legal, não se extrai nenhum sentido vinculado da decisão do Ministro
pela proposta da Autoridade de AIA e que, tal é corroborado, pelo facto do
membro do Governo ser superior hierárquico desta. Assim, o Ministro terá
liberdade para emitir qualquer um dos 3 tipos de DIAs, embora tal não o exime
de um dever de fundamentação agravado ou
qualificado para afastar o juízo técnico da Autoridade de AIA.
Por seu lado, a Professora Carla Amado Gomes
faz uma interpretação no sentido de que o Ministro não se encontra vinculado à
proposta de emissão de DIA desfavorável da Autoridade de AIA, embora defenda
que o membro do Governo deveria estar condicionado a esse sentido negativo da
DIA. Argumenta a autora que, se assim não for, a emissão da DIA por parte do
Ministro estará vulnerável, expondo-a a
possível sindicância por parte de autores populares e possivelmente
sustentada em motivações políticas e
anti-ambientais, mistura que, corporizada na mesma decisão, se lhe afigura paradoxal. Ou seja, no fundo a autora
sustenta que o Ministro deve estar vinculado à referida proposta, emitindo uma
DIA desfavorável.
Em suma, existem posições diferentes que se
retiram prima facie da interpretação
que se faça da letra da lei. Analisando o elemento literal, o art. 16.º n.º 7
ao referir-se a “respectiva proposta de DIA” quer dizer isso mesmo: uma
proposta. Assim, sendo proposto ao ministro um certo sentido para a emissão da
DIA, este decidirá da forma que melhor entender e, por isso, conclui-se que não
está vinculado a emitir uma DIA desfavorável. Todavia, o regime, apesar de não
ser perfeito, pretende acautelar todas as hipóteses: como refere o Dr. Jorge
Pação, decorrente do princípio da imparcialidade (de garantias de
imparcialidade e isenção), pergunta-se qual deve ser o efectivo papel do
Ministro no procedimento; a Prof.ª Carla Amado Gomes também, indirectamente,
acaba por levantar essa questão (quanto às motivações “exteriores” de que pode
o Ministro ser alvo, ou até das suas próprias convicções políticas); no fim, o
ministro só decidirá (é o que expressamente se encontra consagrado no art.
16.º), quanto a decisões desfavoráveis e não quanto a decisões favoráveis. Ora,
qual terá sido o critério do legislador? É que, se bem virmos, se o Ministro
serve para decidir pela emissão ou não emissão de DIAs desfavoráveis, por
maioria de razão também o deveria fazer para as DIAs favoráveis (argumento que
se pode achar na posição do Professor Tiago Antunes). Assim, o mesmo regime
deveria ser aplicado não apenas a DIAs desfavoráveis, mas também quanto às DIAs
favoráveis: no fundo, o membro do governo responsável deveria sempre apreciar
uma proposta favorável, favorável condicionada ou desfavorável submetida pela
Autoridade de AIA. Só assim haveria um efectivo equilíbrio de “poderes”: sem
pôr excessivamente em causa a isenção e imparcialidade do Ministro ou membro do
governo responsável, todos os intervenientes no processo de emissão da DIA
teriam uma palavra a dizer, ainda que a decisão final coubesse ao Ministro. O
crivo do Ministro funcionaria (como aliás, deve funcionar), apreciando todo o
procedimento que precede a emissão da DIA, funcionando por isso como mais uma
garantia de imparcialidade e isenção na decisão, tomando ainda outros factores
em consideração que não especificamente técnicos: não é prejudicial, mas sim
enriquecedora do procedimento e garantia de uma decisão mais “equilibrada”,
porquanto o Direito do Ambiente não é hermético.
Bibliografia:
-
ANTUNES, Tiago
-
GOMES, Carla Amado
2014:
Introdução ao Direito do Ambiente, 2ª ed., AAFDL, Lisboa, pp. 148-150, 155-157
- LANCEIRO, Rui Tavares
- PAÇÃO, Jorge
-
SILVA, Vasco Pereira da
2005:
Verde Cor de Direito, Almedina,
Coimbra, pp. 153-158, 162