domingo, 18 de maio de 2014

NATUREZA DA RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS AMBIENTAIS (OU ECOLÓGICA)


A responsabilidade civil ambiental consta, no ordenamento jurídico português, do Decreto-Lei nº147/2008, de 29 de Julho[1] e institui com ele um sistema de tratamento uniforme dado às situações de responsabilização por danos ambientais.

Grande parte do regime vertido neste Decreto-Lei já decorria da Lei de Bases do Ambiente e da Lei de Participação Procedimental e Ação Popular, no entanto, este representou uma melhoria face à situação anterior, pois havia muitas dificuldades interpretativas relativamente aos preceitos, o que complicava a sua aplicação.

Ora, este Decreto-Lei não representa apenas facilidades. Ao transpor a diretiva, o legislador inseriu um Capítulo (o II) dedicado à Responsabilidade Civil, gerando dúvidas quanto à aplicação do regime, ou seja, pode-se retirar que o Capítulo III não versa sobre o instituto da responsabilidade civil, ou ainda, que este se aplicaria apenas às entidades públicas[2], até por ter por título responsabilidade administrativa pela prevenção e reparação de danos ambientais.

O Prof. Menezes Leitão entende ser assim. Segundo este autor, a Decreto-Lei estipula uma responsabilidade civil, nos seus artigos 7º e 8º, e uma responsabilidade administrativa (artigo 11º e ss). Mais, retira do artigo 10º/1 que a responsabilidade civil é subsidiária à administrativa, o que critica, pois pode funcionar como um obstáculo aos pedidos indemnizatórios, deduzidos pelos cidadãos, pelos danos causados ao ambiente.

A Prof. Carla Amado Gomes entende que aquele título é apenas uma expressão infeliz.

Com a inserção deste Capítulo II, o legislador incluiu no âmbito do diploma situações que a diretiva não pretendia regular. Esta ampliação do âmbito era desnecessária uma vez que aos danos pessoais e patrimoniais, por via de componente ambiental, são aplicáveis as regras gerais do Código Civil (artigo 483º e ss).

É de referir que o que justificava a criação deste diretiva e decreto-lei era a dificuldade de integrar o dano ecológico (ao ambiente per si), no regime do Código Civil e da já referida Lei da participação procedimental e da ação popular[3]. Era notoriamente difícil definir o destino das indemnizações pecuniárias no caso de lesão ecológica insuscetível de reparação (reclamada por autores populares, defendendo interesses difusos). Este problema ficou efetivamente resolvido estabelecendo-se que estas indemnizações revertem para o Fundo de Intervenção Ambiental (artigo 23º RJRDA), ficando afetos a projetos de recuperação de bens ambientais (artigo 23º /2 ).

Posto isto, verifiquemos a bipolaridade da responsabilidade por dano ambiental[4] no Decreto-Lei 147/2008. Ora, a doutrina diverge quanto a esta conceção e articulação do regime, interpretações a que o referido Decreto-Lei se presta. Como já supramencionado, ao transpor a diretiva o legislador consagrou, igualmente, a responsabilidade por danos ambientais[5], o que o tornou suscetível de várias interpretações.

A Prof. Carla Amado Gomes privilegia a restituição dos bens ambientais naturais, excluindo deste modo a indemnização por danos individuais.

Numa posição oposta, Branca Martins da Cruz, privilegia a ação judicial com o objetivo de ressarcir os danos individualmente causados face à reparação dos danos ecológicos. Nesta linha, importa referir o dito pelo Prof. Figueiredo Dias, ou seja, que este pedido de tutela para a situação de lesão feito pelos cidadãos, tem um reflexo positivo no ambiente em si, qualificando-o como um fenómeno de free-riding [6].

Ambas as posições negam assim uma natureza bipolar do regime consagrado, sendo esta também a posição do Prof. Vasco Pereira da Silva[7].

Outras interpretações são possíveis, como é o caso da posição defendida pelo Dr. Tiago Antunes, que opta pela natureza dúplice desta responsabilidade. Esta opinião tem, desde logo, suporte no preâmbulo que distingue entre os regimes que constam do Decreto-Lei[8]. Mas não basta.

Temos a este favor a consagração de uma vertente mais antropocêntrica, uma vez, que vê o dano enquanto a lesão feita à esfera jurídica do individuo e o que está em causa é o seu ressarcimento na responsabilidade por danos ambientais e uma componente mais ecocêntrica, considerando a lesão ao ambiente em si, na responsabilidade por danos ecológicos (puros). Apenas esta foi objeto da Diretiva transposta, incluindo os significativos danos à água, solo, espécies ou habitats naturais protegidos. Cumpre referir que quanto ao solo, há efetivamente uma referência antropogénica pois estes danos só serão considerados se puderem prejudicar a saúde humana.

É de considerar ainda a própria sistematização do Decreto-Lei, pois assenta em dois pilares, diferenciados em dois capítulos autónomos, o que desde logo evidencia a natureza divergente entre eles.

Posto isto, cabe tomar posição. Parece que os argumentos do Dr. Tiago Antunes são claramente procedentes, tendo regimes diferentes para lesões a pessoas e bens (que constituam património) e um outro para os referidos danos ecológicos puros, “o que, mais do que problemático, pode revelar-se virtuoso”[9].

Ora, por um lado, num mesmo diploma se regem todo o tipo de danos suscetível de causar lesão ao ambiente (seja lesão pura, seja por via de componente ambiental; objetiva, subjetiva..) sendo estas complementares, por outro, pode suscitar dificuldades pois este não define as situações que cabem no âmbito de umas e outras situações e se, eventualmente, se podem cumular. Falta então dar resposta às questões que, durante este trabalho, se expuseram, inclusive se será uma das responsabilidades subsidiária de outra.

Diz-nos o Prof. Menezes Leitão, que “apesar das dificuldades que o funcionamento clássico da responsabilidade civil coloca à reparação dos danos ambientais, o Direito Português tem vindo a consagrar sucessivos regimes de responsabilidade civil ambiental. Espera-se que a sua aplicação prática se torne efetiva e que surja uma efetiva responsabilização nesta área”.

Entendemos, ser apenas de esperar que o legislador tome posição nas querelas interpretativas a que este diploma se expõe.

 

BIBLIOGRAFIA

TIAGO ANTUNES, Da Natureza Jurídica da Responsabilidade Ambiental, in Actas do Colóquio - A Responsabilidade Civil por Dano Ambiental, Faculdade de Direito de Lisboa, Novembro de 2009, ICJP, org. Carla amado Gomes e Tiago Antunes

HELOÍSA OLIVEIRA, Instrumentos de tutela do ambiente: responsabilidade por dano ambiental/ecológico, in Actas do Colóquio – A Revisão da Lei de Bases do Ambiente, Faculdade de Direito de Lisboa, Fevereiro de 2011, ICJP, org. Carla Amado Gomes e Tiago Antunes

Carla Amado Gomes, De que falamos quando falamos de dano ambiental? Direito, mentiras e crítica, in Actas de Colóquio - A Responsabilidade Civil por Dano Ambiental, Novembro de 2009,ICJP, org. Carla Amado Gomes e Tiago Antunes

 

LUÍS MENEZES LEITÃO, A Responsabilidade Civil por Danos causados ao Ambiente, in Actas de Colóquio - A Responsabilidade Civil por Dano Ambiental, Novembro de 2009,ICJP, org. Carla Amado Gomes e Tiago Antunes

 

Rita João Soares Freire

Nº 18382



[1] Por transposição da Diretiva nº 2004/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Abril de 2004.
[2] A Prof. Carla Amado Gomes refere ainda o constrangimento que causaria, pois teria que se articular este regime com o da Lei 67/2007
[3] Lei 83/95, de 31 de Agosto
[4] Nas palavras da Prof. Carla Amado Gomes “a (falsa) bipolaridade da responsabilidade por dano ambiental”
[5] Como refere a Dr.ª Heloísa Oliveira, dano ambiental reportar-se-á a lesão de interesses ou direitos legalmente protegidos por via de um componente ambiental e será um dano ecológico o dano ao recurso natural em si mesmo. Vide Instrumentos de tutela do ambiente: responsabilidade por dano ambiental/ecológico, Actas do Colóquio – A Revisão da Lei de Bases do Ambiente (2 e 3 de Fevereiro de 2011), org. Carla Amado Gomes e Tiago Antunes
[6] Aspetos contenciosos da efetivação da responsabilidade ambiental – a questão da legitimidade, em especial – referência em Carla Amado Gomes, De que falamos quando falamos de dano ambiental? Direito, mentiras e crítica, Actas de Colóquio, A responsabilidade civil por dano ambiental, 2009, org. Carla Amado Gomes e Tiago Antunes
[7] VASCO PEREIRA DA SILVA, Ventos de Mudança no Direito do Ambiente – A responsabilidade civil ambiental, in Actas das Jornadas de Direito do Ambiente – O Que há de novo no Direito do ambiente?,2009, org. Carla Amado Gomes e Tiago Antunes (em que elogia o tratamento uniforme do sistema)
[8]  «estabelece-se, por um lado, um regime de responsabilidade civil subjectiva e objectiva (…). Por outro, fixa-se um regime de responsabilidade administrativa (…)”
[9] Tiago Antunes, Da Natureza Jurídica da Responsabilidade Ambiental, Actas de Colóquio, A responsabilidade civil por dano ambiental, 2009, pp.148, org. Carla Amado Gomes e Tiago Antunes

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