domingo, 18 de maio de 2014

Regime de Avaliação de Impacte Ambiental: algumas dúvidas

Da dispensa do procedimento de AIA
O art. 4.º do Regime da Avaliação de Impacte Ambiental (RAIA, Decreto-Lei n.º 151-B/2013 de 31 de Outubro), prevê a possibilidade de dispensa do procedimento de avaliação de impacte ambiental (AIA), por parte dos ministros competentes (decisão conjunta do membro do Governo responsável pela pasta do Ambiente e do membro do Governo responsável pela pasta relacionada com o projecto), em “circunstâncias excepcionais e devidamente fundamentadas” (n.º 1). Impõe-se saber, por isso, o que serão “circunstâncias excepcionais”.
Na doutrina, o Professor Vasco Pereira da Silva tem sido muito crítico desta disposição normativa, defendendo que “casos excepcionais” podem ser todos, sendo a letra da lei muito abrangente. O Prof. Vasco Pereira da Silva critica a norma, argumentando que: esta confere uma grande amplitude das margens de apreciação e de decisão, ou de discricionariedade, da Administração; e não existiu uma maior densificação do conceito de excepcionalidade, estabelecendo critérios para a sua verificação e remetendo para o juízo das autoridades administrativas, tanto a apreciação de tais circunstâncias, como a determinação das medidas a adoptar, com as consequentes dificuldades quer para a tarefa de concretização da lei pela Administração, quer para o seu controlo pelos Tribunais. O citado autor defende, por isso que, sem ter que se afastar a discricionariedade, deveriam ter sido detalhadas as circunstâncias e as condições que poderiam dar lugar à dispensa de procedimento. Ademais, não parecerá razoável que, por iniciativa do proponente, com base num simples requerimento, ainda que devidamente fundamentado e perante uma situação excepcional, aquele possa pedir a dispensa do procedimento de AIA. Por essa razão, o Prof. Vasco Pereira da Silva defende que se deveria exigir sempre ao proponente, pelo menos, a apresentação de um estudo de impacte ambiental (EIA), de modo a permitir à Administração estar em melhores condições de tomar uma decisão acertada, quer quanto à dispensa, quer quanto a eventuais medidas de salvaguarda ambiental. Ou também podemos considerar que fará todo o sentido, sob pena de se gerar uma situação paradoxal, que a dispensa deveria ser feita depois do estudo de AIA, para que os Ministros tivessem, assim, uma base técnica maior e mais bem informada em que pudessem assentar essa dispensa. Todavia, ao mesmo tempo, depois do estudo de AIA também não havia já nada para dispensar!
Posição pertinente é também a da Prof.ª Carla Amado Gomes, que refere que este subprocedimento constitui um desvio ao princípio da prevenção (o que levou a uma Comunicação da Comissão Europeia, Clarification of the application of article 2(3) of the EIA directive, de 2006[1]), enumerando algumas considerações críticas: que a letra do n.º 1 do art. 4.º é demasiado ampla, constituindo uma espécie de norma habilitante em branco, sendo difícil o controlo do exercício desta competência, sem quaisquer referências exemplificativas, salvo erro manifesto; que a desnecessidade de apresentação do EIA, vem contra o princípio de que é o proponente que deve demonstrar a ausência de impactos relevantes associados ao projecto, remetendo para a Administração a carga da aferição dos riscos que aquele eventualmente envolve; a não existência de um momento de contraditório público, contraria abertamente a lógica de participação que envolve a AIA; e, por fim, o parecer da autoridade da AIA no qual se encontrará a referência a medidas de minimização a adoptar pelo proponente (art. 4.º n.º 4 RAIA), bem como eventuais formas de avaliação diversas da avaliação de impacto, que não é vinculante para os membros do Governo que emitirão a decisão de dispensa.
Por último, o Dr. Jorge Pação enuncia uma posição interessante na análise que faz desta possibilidade de dispensa, invocando o princípio da imparcialidade, que se assume como critério legal de controlo de que a decisão foi, apenas e só, tomada tendo como fundamento interesses juridicamente relevantes e protegidos face ao projecto em causa, e não outros que fogem à ponderação legalmente exigida e permitida. Tendo em conta este princípio, nos momentos de maior discricionariedade, o princípio da imparcialidade deve ser especialmente preservado. Para além da aplicação desse princípio, destaca a distinção entre actos de condução política e actos de administração a cargo do Governo, que podem acabar por criar “interferências” e dificuldades de diferenciação material entre “governo” ou política e administração.
Poderemos assim concluir, com o auxílio das 3 posição supra referidas, que estaremos perante 3 grandes vectores que devem ser respeitados para aplicação do procedimento de dispensa de AIA: o primeiro, é que deverá haver uma maior densificação dos critérios para a sua aplicação, o que poderá passar, numa próxima revisão do Regime de Avaliação de Impacte Ambiental, pela transposição dos critérios enunciados na Comunicação da Comissão Europeia; em segundo, que os princípios gerais da Administração Pública devem ser sempre respeitados, como é o caso do Princípio da Imparcialidade, mas também os Princípios da Proporcionalidade, Adequação e Informação, na medida tomada, que deve ser sempre fundamentada; por último, a necessidade de que o proponente apresente um EIA fará todo o sentido, desde que também esteja assegurado o princípio do contraditório dos interessados a ser tomado em conta na decisão conjunta dos Ministros, salvo estarmos perante um caso urgente (que poderá dar lugar a uma “dispensa provisória”?), hipótese em que poderão os interessados ser ouvidos posteriormente, por se tratar de um requisito essencial de interesse público e pedra basilar do Direito Administrativo.

Do eventual "condicionamento" na emissão de DIA desfavorável
No regime da AIA, podem ser emitidas Declarações de Impacte Ambiental (DIA), favoráveis, favoráveis condicionadas e desfavoráveis. As duas primeiras são competência da Autoridade de AIA[2], enquanto que a última é da competência do Ministro do Ambiente (caso a Autoridade de AIA considere existir fundamento que justifique a emissão de DIA desfavorável). Ou seja, se a Autoridade de AIA quiser viabilizar o projecto, a ela caberá emitir uma DIA favorável ou favorável condicionada. Quanto à emissão de DIA desfavorável, como previsto no art. 16.º n.ºs 7 e 8 do RAIA, tem sido controvertido na doutrina saber se o Ministro, efectivamente, estará vinculado à emissão de DIA desfavorável, quando a Autoridade de AIA assim o considere (por entender que o projecto comportará impactos ambientais negativos, p. ex.).
O Professor Tiago Antunes explica que, quando “chega” ao Ministro, tratando-se de uma DIA desfavorável, esta “chega” apenas para este emiti-la desfavoravelmente (pois o Ministro encontra-se vinculado), o que implica que teremos um subalterno (a Autoridade de AIA), a decidir previamente ou a condicionar a decisão do Ministro (no fundo, a instrumentalizá-lo). Poderemos assim ter uma violação do princípio da legalidade da competência (art. 29.º do CPA), por a prática de um mesmo acto poder pertencer a diferentes órgãos, consoante o respectivo sentido de decisão. Argumenta por isso o autor, que esta medida se trata de uma “aberração jurídica”, defendendo que o Ministro não estará vinculado à proposta da Autoridade de AIA, não estando vinculado às escolhas dos técnicos/serviços (embora os tenha que ter em conta), podendo decidir de forma diferente. Conclui o autor que, para além de não ser certo que o Ministro esteja impedido de viabilizar o projecto, também não é líquido que a competência para a emissão de DIAs favoráveis esteja atribuída em termos exclusivos à Autoridade de AIA.
O autor extrai ainda, através do artigo 25.º n.º 3 do RAIA que, sendo o Ministro competente para alterar uma DIA favorável, por maioria de razão também o será para emitir, se assim o quiser, uma DIA favorável desde o momento inicial. Enfim, o Ministro nunca ficará obrigado a seguir um parecer desfavorável dos técnicos/serviços: mesmo que se admita que este não tem competência para praticar uma DIA favorável, ele poderia sempre decidir não praticar o acto proposto, remetendo o processo de novo à Autoridade de AIA para que fosse esta a actuar, emitindo uma DIA favorável.

O Prof. Rui Tavares Lanceiro defende também que, apesar do Ministro apenas ter competência para emitir a DIA no caso de esta ser desfavorável, este pode sempre fazer uma apreciação diferente dos elementos constantes do processo e dos impactes ambientais em causa, emitindo uma DIA favorável, ou favorável condicionada. Acrescenta ainda que, do regime legal, não se extrai nenhum sentido vinculado da decisão do Ministro pela proposta da Autoridade de AIA e que, tal é corroborado, pelo facto do membro do Governo ser superior hierárquico desta. Assim, o Ministro terá liberdade para emitir qualquer um dos 3 tipos de DIAs, embora tal não o exime de um dever de fundamentação agravado ou qualificado para afastar o juízo técnico da Autoridade de AIA.
Por seu lado, a Professora Carla Amado Gomes faz uma interpretação no sentido de que o Ministro não se encontra vinculado à proposta de emissão de DIA desfavorável da Autoridade de AIA, embora defenda que o membro do Governo deveria estar condicionado a esse sentido negativo da DIA. Argumenta a autora que, se assim não for, a emissão da DIA por parte do Ministro estará vulnerável, expondo-a a possível sindicância por parte de autores populares e possivelmente sustentada em motivações políticas e anti-ambientais, mistura que, corporizada na mesma decisão, se lhe afigura paradoxal. Ou seja, no fundo a autora sustenta que o Ministro deve estar vinculado à referida proposta, emitindo uma DIA desfavorável.
Em suma, existem posições diferentes que se retiram prima facie da interpretação que se faça da letra da lei. Analisando o elemento literal, o art. 16.º n.º 7 ao referir-se a “respectiva proposta de DIA” quer dizer isso mesmo: uma proposta. Assim, sendo proposto ao ministro um certo sentido para a emissão da DIA, este decidirá da forma que melhor entender e, por isso, conclui-se que não está vinculado a emitir uma DIA desfavorável. Todavia, o regime, apesar de não ser perfeito, pretende acautelar todas as hipóteses: como refere o Dr. Jorge Pação, decorrente do princípio da imparcialidade (de garantias de imparcialidade e isenção), pergunta-se qual deve ser o efectivo papel do Ministro no procedimento; a Prof.ª Carla Amado Gomes também, indirectamente, acaba por levantar essa questão (quanto às motivações “exteriores” de que pode o Ministro ser alvo, ou até das suas próprias convicções políticas); no fim, o ministro só decidirá (é o que expressamente se encontra consagrado no art. 16.º), quanto a decisões desfavoráveis e não quanto a decisões favoráveis. Ora, qual terá sido o critério do legislador? É que, se bem virmos, se o Ministro serve para decidir pela emissão ou não emissão de DIAs desfavoráveis, por maioria de razão também o deveria fazer para as DIAs favoráveis (argumento que se pode achar na posição do Professor Tiago Antunes). Assim, o mesmo regime deveria ser aplicado não apenas a DIAs desfavoráveis, mas também quanto às DIAs favoráveis: no fundo, o membro do governo responsável deveria sempre apreciar uma proposta favorável, favorável condicionada ou desfavorável submetida pela Autoridade de AIA. Só assim haveria um efectivo equilíbrio de “poderes”: sem pôr excessivamente em causa a isenção e imparcialidade do Ministro ou membro do governo responsável, todos os intervenientes no processo de emissão da DIA teriam uma palavra a dizer, ainda que a decisão final coubesse ao Ministro. O crivo do Ministro funcionaria (como aliás, deve funcionar), apreciando todo o procedimento que precede a emissão da DIA, funcionando por isso como mais uma garantia de imparcialidade e isenção na decisão, tomando ainda outros factores em consideração que não especificamente técnicos: não é prejudicial, mas sim enriquecedora do procedimento e garantia de uma decisão mais “equilibrada”, porquanto o Direito do Ambiente não é hermético.

Bibliografia:

- ANTUNES, Tiago
2013: A Avaliação de Impacto Ambiental e o Princípio da Imparcialidade, in e-book “Revisitando a Avaliação de Impacto Ambiental” do ICJP de 30 de Outubro de 2013, coord. Carla Amado Gomes e Tiago Antunes, disponível em http://icjp.pt/sites/default/files/publicacoes/files/ebook_aia.pdf, pp. 228-231

- GOMES, Carla Amado
2014: Introdução ao Direito do Ambiente, 2ª ed., AAFDL, Lisboa, pp. 148-150, 155-157

- LANCEIRO, Rui Tavares
2013: A Avaliação de Impacto Ambiental e o Princípio da Imparcialidade, in e-book “Revisitando a Avaliação de Impacto Ambiental” do ICJP de 30 de Outubro de 2013, coord. Carla Amado Gomes e Tiago Antunes, disponível em http://icjp.pt/sites/default/files/publicacoes/files/ebook_aia.pdf, pp. 192-196

- PAÇÃO, Jorge
2013: A Avaliação de Impacto Ambiental e o Princípio da Imparcialidade, in e-book “Revisitando a Avaliação de Impacto Ambiental” do ICJP de 30 de Outubro de 2013, coord. Carla Amado Gomes e Tiago Antunes, disponível em http://icjp.pt/sites/default/files/publicacoes/files/ebook_aia.pdf, pp. 72-95

- SILVA, Vasco Pereira da
2005: Verde Cor de Direito, Almedina, Coimbra, pp. 153-158, 162





[1] Importa referir os critérios enunciados na Comunicação para concessão da dispensa:
“2.9 For a case to be considered as exceptional and qualify for the exemption all the
following criteria would normally need to be met:
• an urgent and substantial need for the project;
• inability to undertake the project earlier;
• inability to meet the full requirements of the Directive.
2.10 The need for the project would have to be such that failure to proceed with it
would be likely to present a serious threat, for example to life, health or human welfare;
to the environment (e.g. contamination of land, water or air, or flooding); to political,
administrative or economic stability; or to security. (…)
2.11 The exemption would generally be justified only if the emergency which gave rise
to the project could not have been foreseen, or if it could have been foreseen but the
project could not have been undertaken earlier. (…).
2.12 As indicated in paragraph 2.8 above, the circumstances of an exceptional case must
be such as to make compliance with all the requirements of the Directive impossible or
impracticable, for example where a development needs to be approved and completed
so quickly that there is insufficient time to prepare all the environmental information
required under Article 5(1), or to conduct a public consultation exercise prior to the
decision to proceed with it.”.
[2] Que pode ser, como refere o art. 8.º n.º 1 do RAIA, a Agência Portuguesa do Ambiente, I.P. (APA) ou uma Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR).


Filipe Braz Mimoso, n.º 21121

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