terça-feira, 13 de maio de 2014

As Contraordenações ambientais




I- Notas introdutórias, as duas tutelas repressivas
Este post visa um enquadramento das contraordenações ambientais, no âmbito da tutela repressiva ambiental, e uma pequena análise do seu regime em Portugal.
Apesar de o ambiente ser hoje um bem jurídico fundamental, e da crescente consciencialização quanto à necessidade de proteção ambiental por parte dos poderes públicos, a nossa Constituição não impõe um sistema de sanções obrigatório no que toca à violação de normas ambientais.[1]
Não obstante o que foi referido, as infrações às normas ambientais devem ser alvo de repressão. Como já se disse, o ambiente é um bem jurídico fundamental e deve ser protegido. Ora, a função protetora das normas sai frustrada se não houver uma punição associada ao não cumprimento das mesmas. Isto faz ainda mais sentido se se pensar na dimensão de prevenção associada ao direito do ambiente e corroborada pela articulação entre a CRP e a LBA (em especial os artigos 46º e 47º).
É assim inconcebível que quem provoque danos ecológicos saia impune.
Deverá, então, haver um juízo de censura social quanto a este tipo de atividades. Qual será a melhor tutela no que toca à repressão e punibilidade das infrações de normas ambientais?
Existem, neste âmbito duas realidades: a tutela penal e a contraordenacional. Qual será a que melhor prossegue um eficaz sancionamento?
O Professor Vasco Pereira da Silva elenca argumentos a favor de ambas as tutelas.
Quanto à penal, afirma que esta confere mais importância e simbolismo aos crimes, uma elevada dignidade à proteção ambiental, um maior vigor e intensidade à repressão; e, que permite a existência de garantias inerentes ao processo penal.
No que toca à contraordenacional, o Professor refere que, por via desta tutela, é conferida uma maior celeridade e eficácia à repressão, e que, deste modo, é ainda salvaguardada a autonomia do direito penal.
Este Professor refere ainda pontos negativos em relação a ambas as tutelas.
Em relação à penal, afirma que o direito penal visa essencialmente a repressão, ao contrário do ambiental que se pauta pela prevenção, pelo que esta tutela pode não ser a mais adequada; além disso refere o perigo de descaracterização e subalternização do direito penal, se for visto como meramente acessório do administrativo; por fim, alerta que existe um risco de ineficácia associado a um “pesado” sistema penal devido à dificuldade em apanhar e condenar os criminosos ambientais.
A tutela contraordenacional tem, também, pontos negativos na medida em que implica uma diminuição das garantias de defesa, e, uma vez que pode levar à visualização da sanção pecuniária como um simples custo da atividade económica poluente.
A União Europeia demonstra também preocupações no que concerne à repressão das infrações relativas às normas de proteção ambiental. A Diretiva 2008/99 CE do Parlamento e do Conselho de 19 de Novembro vai nesse sentido. Esta diretiva veio reforçar a tutela penal a nível nacional, uma vez que é afirmado que a tutela penal é a mais eficaz.[2]
Sigo neste âmbito a posição do Professor Vasco Pereira da Silva e da Professora Carla Amado Gomes, quando afirmam que a melhor solução será a da utilização e coordenação das duas tutelas, uma vez que se complementam.
Assim, as condutas e os casos mais graves deverão ser atribuídos à tutela penal que os criminalizará. No entanto, esta não deverá ser a tutela habitual uma vez que a via contraordenacional é mais célere, pois, em princípio, implica a dispensa dos tribunais, e, também mais eficaz, ao permitir a associação entre coimas e sanções acessórias. Os casos menos graves pertencerão, assim, à tutela contraordenacional.
Cabe ao legislador considerar cada situação e analisá-la de modo a decidir pela melhor tutela, baseando-se sempre na realidade social e na sensibilidade da comunidade.
O mais importante é que haja uma fiscalização firme de modo a permitir uma repressão das infrações que acarrete uma diminuição da “inconsciência ambiental”[3].
O legislador seguiu a mesma posição. Este criou crimes ecológicos (em 1995, 2007 e 2011) que estão previstos nos artigos 274º,278º, 279º, 281º do Código Penal, mas deixou algum espaço para a criação de contraordenações no domínio dos diplomas dos regimes sectoriais.

II- As Contraordenações em especial
Neste âmbito, irá ser analisado um pequeno número de disposições da Lei Quadro das Contraordenações Ambientais (LQCOA). Para tal, parti da doutrina da Professora Carla Amado Gomes e de Lourenço Nogueiro.
Antes disso, cabe fazer uma pequena introdução a esta lei:
A LQCOA, ou Lei 50/2006 de 29 Agosto[4], foi elaborada devido a uma necessidade de coordenação e unificação. Isto, porque existia um número elevado de diplomas sectoriais com remissões para categorias de contraordenações, o que tornava o sistema demasiado complexo e desorganizado.
Esta lei tem algumas especialidades face ao regime geral das contraordenações (DL 433/82 de 27 de Outubro): permite as sanções acessórias; estabelece montantes consideráveis para as coimas; admite que sejam decretadas medidas cautelares; possibilita um cadastro nacional; cria o fundo de intervenção ambiental.

Artigo 1º:
O seu nº3 é problemático. Ao delimitar o objeto “ambiente” através de uma referência à LBA, esta norma permite que a LQCOA seja aplicável à violação de normas pertencentes a áreas diferentes e que impõem um regime próprio, tais como o património cultural, o urbanismo, o ordenamento do território. Ora, essa não é a função da lei 50/2006, daí que a doutrina afirme que esta disposição é perigosa porque imprecisa.
Este artigo levanta ainda problemas quanto à culpa. Esta não consta da letra da lei como pressuposto de imputação, sendo apenas referida a censurabilidade do facto.
Apesar disto, a culpa do agente importa, uma vez que não é possível a punibilidade de uma conduta com uma contraordenação, sem a associação de um desvalor moral. A situação não é indiferente eticamente.
Além disso, a culpa é referida várias vezes ao longo da lei, nomeadamente nos artigos: 9º,nº3, 12º,nº1; 17º,nº2; 20º,nº1; 22º,nº1.

Artigo 8º:
Este artigo estabelece o princípio geral de responsabilização.
O nº1 e o nº2 importam quanto à imputação subjetiva dos factos ilícitos à pessoa coletiva enquanto que o nº4 refere casos em que esta não ocorre.
O nº3 acarreta alguns problemas:
Este permite que à responsabilidade da pessoa jurídica possa cumular-se a responsabilidade das pessoas físicas que sejam titulares dos órgãos de administração ou responsáveis pela direção ou fiscalização de áreas de atividade em que ocorre a pártica da contraordenação.
Isto pode acontecer quando “conhecendo ou devendo conhecer” a prática da infração, não adotem “medidas adequadas” a pôr termo à mesma.
É importante sublinhar que, quanto ao dever de conhecimento, não é necessário que haja conhecimento efetivamente, bastando o dever conhecer, e que, quanto às medidas adequadas, não basta a oposição à prática da infração, sendo necessário fazer algo mais. No fundo, esta é uma questão de ponderação no caso concreto.
Para a autoridade administrativa que vai aplicar a coima não é tarefa simples a integração destes dois conceitos, pelo que se torna necessária uma fundamentação e uma prova bastante quanto à decisão tomada.
Para Lourenço Nogueiro, as medidas adequadas implicam um dolo específico e o dever de conhecimento um dolo eventual. Isto é, quanto às primeiras é necessário provar que o autor conhecia efetivamente a infração e que podendo ter evitado a mesma, nada vez. Em relação ao dever de conhecimento, o agente, pelo menos, tem de ter previsto a prática da infração e tem de ter aceite a sua realização, não fazendo nada para a evitar.
Ainda no âmbito deste artigo, cabe referir que este não pune a ação direta dos representantes, sendo essa a ratio do 15º.

Artigo 41º
O nº1 deste artigo prevê uma antecipação da tutela, tanto quanto a situações de risco para a saúde e ambiente, como também quanto a situações em que é necessário salvaguardar o processo contraordenacional.
Há uma conexão entre esta lista e a das sanções acessórias previstas no artigo 30º. O próprio 41º,nº2,b) confirma esta ligação. Esta situação gera um potencial problema: as sanções acessórias apenas se aplicam perante uma infração que implique uma sanção grave ou muito grave. Ora, isto aplica-se também às medidas cautelares?
Não é assim. Existem situações em que pode haver aplicação de uma medida cautelar a uma contraordenação leve, sendo exemplo disso o artigo 40º,nº1,f). Ou seja, pode haver aplicação de medida cautelar a qualquer processo.

Artigo 54º
Este artigo permite que, até à decisão, quem infringiu as normas ambientais possa pagar a sua coima voluntariamente.
O nº4 traz problemas, na medida em que há quem defenda a sua inconstitucionalidade. Isto, porque o artigo impõe que o pagamento voluntário equivale à condenação, o que acarreta uma diminuição das garantias de defesa do arguido.
A que factos se deve atender, uma vez que os autos ainda estão no início? Os factos do auto de notícia não se revelam uma boa solução, pois ainda se podem revelar como não sendo verdadeiros.
Lourenço Nogueiro defende, assim, que perante o pagamento voluntário, o arguido tem direito a prosseguir com os autos com vista a apurar a sua verdadeira responsabilidade. Este refere ainda, que os 15 dias úteis que o artigo refere se contam a partir da notificação final ao arguido (depois da instrução), e que, para além disso, o pagamento não tem de ser feito dentro desse prazo, desde que ainda não tenha ocorrido a tal notificação final do arguido.

III- A Jurisidição
No âmbito das contraordenações, a impugnação das decisões contraditórias e de medidas cautelares deve ser feita nos tribunais comuns, como indica o artigo 4º,nº1,alínea l) in fine do ETAF.
Esta situação é criticada na doutrina. O primeiro problema que se levanta prende-se com o artigo 212º,nº3 da CRP que estabelece a cláusula de reserva de competência. No entanto, alguma doutrina e o próprio Tribunal constitucional (no Acórdão 522/2008) referem que esta reserva não é absoluta mas sim tendencial, pelo que este problema estaria assim resolvido.
Mas as críticas continuam. É dito que a disciplina do CPTA é mais favorável que a do CPP, devido à figura da suspensão provisória do ato (presente no 128º CPTA)[5]e que, apesar da proximidade entre o direito contraordenacional e o penal, a especialização de algumas áreas do direito administrativo,  a preferência pela reconstituição natural e a defesa de interesses públicos, fazem com que os tribunais comuns não sejam os mais aptos a lidar com estes casos[6].
Concordo assim com o que foi dito anteriormente, seguindo a doutrina que defende que deveria caber aos tribunais administrativos o conhecimento do procedimento contraordenacional.






Bibliografia
Monografias:
GOMES, Carla Amado
2014: Introdução ao direito do ambiente, 2ª Edição, Lisboa:AAFDL

SILVA, Vasco Pereira da
2002: Verde Cor de Direito, Lições de Direito do Ambiente, Coimbra: Almedina

Artigos:
GOMES, Carla Amado
2012: As contraordenações ambientais no quadro da Lei 50/2006 de 29 de Agosto: Considerações gerais e observações tópicas, in: Estudos em Homenagem a Miguel Galvão Telles, Vol. I, Lisboa

NOGUEIRO, Lourenço
2009: Comentário à lei-quadro das contra-ordenações ambientais , in: Revista Portuguesa de Direito do Consumo, Nº 57

Ana do Carmo Santos Pinto. Nº20629


[1] Nem o artigo 9º nem o 66º referem sanções. Já o artigo 52,nº3, alínea a), apesar de referir a existência de perseguição, não esclarece quanto à sua natureza.

[2]Isto, devido a quatro fatores. Em primeiro lugar, é referido que há uma maior reprovação social quando aplicada uma sanção penal em vez de uma sanção administrativa. Depois, é dito que a sanção contraordenacional pode levar à impunidade quando os infratores não tenham meios para pagar as coimas. É também afirmado que existe uma maior cooperação penal do que contraordenacional entre os Estados Membros. Por fim, argumenta-se relativamente à maior imparcialidade garantida pelo processo penal.
[3] GOMES, Carla Amado, Introdução ao direito do ambiente, 2ªEdição, AAFDL, Lisboa, 2014, p.211.
[4] Alterada e republicada pela Lei 89/2009 de 31 Agosto.
[5] Neste sentido, a Professora Carla Amado Gomes. Esta defende ainda que este sistema pode criar um paradoxo entre medidas tomadas imediatamente antes do início do procedimento e medidas tomadas ao longo do mesmo.
[6] Neste sentido, os Professores Maria Fernanda Palma e Figueiredo Dias.

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