I- Notas introdutórias, as
duas tutelas repressivas
Este post visa um enquadramento das contraordenações ambientais, no
âmbito da tutela repressiva ambiental, e uma pequena análise do seu regime em
Portugal.
Apesar de o ambiente ser hoje um
bem jurídico fundamental, e da crescente consciencialização quanto à
necessidade de proteção ambiental por parte dos poderes públicos, a nossa
Constituição não impõe um sistema de sanções obrigatório no que toca à violação
de normas ambientais.[1]
Não obstante o que foi referido,
as infrações às normas ambientais devem ser alvo de repressão. Como já se disse,
o ambiente é um bem jurídico fundamental e deve ser protegido. Ora, a função
protetora das normas sai frustrada se não houver uma punição associada ao não
cumprimento das mesmas. Isto faz ainda mais sentido se se pensar na dimensão de
prevenção associada ao direito do ambiente e corroborada pela articulação entre
a CRP e a LBA (em especial os artigos 46º e 47º).
É assim inconcebível que quem
provoque danos ecológicos saia impune.
Deverá, então, haver um juízo de
censura social quanto a este tipo de atividades. Qual será a melhor tutela no
que toca à repressão e punibilidade das infrações de normas ambientais?
Existem, neste âmbito duas
realidades: a tutela penal e a contraordenacional. Qual será a que melhor
prossegue um eficaz sancionamento?
O Professor Vasco Pereira da
Silva elenca argumentos a favor de ambas as tutelas.
Quanto à penal, afirma que esta
confere mais importância e simbolismo aos crimes, uma elevada dignidade à
proteção ambiental, um maior vigor e intensidade à repressão; e, que permite a
existência de garantias inerentes ao processo penal.
No que toca à contraordenacional,
o Professor refere que, por via desta tutela, é conferida uma maior celeridade
e eficácia à repressão, e que, deste modo, é ainda salvaguardada a autonomia do
direito penal.
Este Professor refere ainda
pontos negativos em relação a ambas as tutelas.
Em relação
à penal, afirma que o direito penal visa essencialmente a repressão, ao
contrário do ambiental que se pauta pela prevenção, pelo que esta tutela pode
não ser a mais adequada; além disso refere o perigo de descaracterização e
subalternização do direito penal, se for visto como meramente acessório do
administrativo; por fim, alerta que existe um risco de ineficácia associado a um
“pesado” sistema penal devido à dificuldade em apanhar e condenar os criminosos
ambientais.
A tutela contraordenacional tem,
também, pontos negativos na medida em que implica uma diminuição das garantias
de defesa, e, uma vez que pode levar à visualização da sanção pecuniária como
um simples custo da atividade económica poluente.
A União Europeia demonstra também
preocupações no que concerne à repressão das infrações relativas às normas de proteção
ambiental. A Diretiva 2008/99 CE do Parlamento e do Conselho de 19 de Novembro vai
nesse sentido. Esta diretiva veio reforçar a tutela penal a nível nacional, uma
vez que é afirmado que a tutela penal é a mais eficaz.[2]
Sigo neste âmbito a posição do
Professor Vasco Pereira da Silva e da Professora Carla Amado Gomes, quando
afirmam que a melhor solução será a da utilização e coordenação das duas
tutelas, uma vez que se complementam.
Assim, as condutas e os casos
mais graves deverão ser atribuídos à tutela penal que os criminalizará. No
entanto, esta não deverá ser a tutela habitual uma vez que a via
contraordenacional é mais célere, pois, em princípio, implica a dispensa dos
tribunais, e, também mais eficaz, ao permitir a associação entre coimas e
sanções acessórias. Os casos menos graves pertencerão, assim, à tutela
contraordenacional.
Cabe ao legislador considerar
cada situação e analisá-la de modo a decidir pela melhor tutela, baseando-se sempre
na realidade social e na sensibilidade da comunidade.
O mais importante é que haja uma
fiscalização firme de modo a permitir uma repressão das infrações que acarrete
uma diminuição da “inconsciência ambiental”[3].
O legislador seguiu a mesma posição.
Este criou crimes ecológicos (em 1995, 2007 e 2011) que estão previstos nos
artigos 274º,278º, 279º, 281º do Código Penal, mas deixou algum espaço para a
criação de contraordenações no domínio dos diplomas dos regimes sectoriais.
II- As Contraordenações em
especial
Neste âmbito, irá ser analisado
um pequeno número de disposições da Lei Quadro das Contraordenações Ambientais
(LQCOA). Para tal, parti da doutrina da Professora Carla Amado Gomes e de
Lourenço Nogueiro.
Antes disso, cabe fazer uma
pequena introdução a esta lei:
A LQCOA, ou Lei 50/2006 de 29
Agosto[4],
foi elaborada devido a uma necessidade de coordenação e unificação. Isto,
porque existia um número elevado de diplomas sectoriais com remissões para
categorias de contraordenações, o que tornava o sistema demasiado complexo e
desorganizado.
Esta lei tem algumas
especialidades face ao regime geral das contraordenações (DL 433/82 de 27 de
Outubro): permite as sanções acessórias; estabelece montantes consideráveis
para as coimas; admite que sejam decretadas medidas cautelares; possibilita um
cadastro nacional; cria o fundo de intervenção ambiental.
Artigo 1º:
O seu nº3 é problemático. Ao
delimitar o objeto “ambiente” através de uma referência à LBA, esta norma permite
que a LQCOA seja aplicável à violação de normas pertencentes a áreas diferentes
e que impõem um regime próprio, tais como o património cultural, o urbanismo, o
ordenamento do território. Ora, essa não é a função da lei 50/2006, daí que a
doutrina afirme que esta disposição é perigosa porque imprecisa.
Este artigo levanta ainda
problemas quanto à culpa. Esta não consta da letra da lei como pressuposto de
imputação, sendo apenas referida a censurabilidade do facto.
Apesar disto, a culpa do agente
importa, uma vez que não é possível a punibilidade de uma conduta com uma
contraordenação, sem a associação de um desvalor moral. A situação não é
indiferente eticamente.
Além disso, a culpa é referida
várias vezes ao longo da lei, nomeadamente nos artigos: 9º,nº3, 12º,nº1;
17º,nº2; 20º,nº1; 22º,nº1.
Artigo 8º:
Este artigo estabelece o
princípio geral de responsabilização.
O nº1 e o nº2 importam quanto à
imputação subjetiva dos factos ilícitos à pessoa coletiva enquanto que o nº4
refere casos em que esta não ocorre.
O nº3 acarreta
alguns problemas:
Este permite que à
responsabilidade da pessoa jurídica possa cumular-se a responsabilidade das
pessoas físicas que sejam titulares dos órgãos de administração ou responsáveis
pela direção ou fiscalização de áreas de atividade em que ocorre a pártica da
contraordenação.
Isto pode acontecer quando
“conhecendo ou devendo conhecer” a prática da infração, não adotem “medidas
adequadas” a pôr termo à mesma.
É importante sublinhar que,
quanto ao dever de conhecimento, não é necessário que haja conhecimento
efetivamente, bastando o dever conhecer, e que, quanto às medidas adequadas, não
basta a oposição à prática da infração, sendo necessário fazer algo mais. No
fundo, esta é uma questão de ponderação no caso concreto.
Para a autoridade administrativa
que vai aplicar a coima não é tarefa simples a integração destes dois conceitos,
pelo que se torna necessária uma fundamentação e uma prova bastante quanto à
decisão tomada.
Para Lourenço Nogueiro, as
medidas adequadas implicam um dolo específico e o dever de conhecimento um dolo
eventual. Isto é, quanto às primeiras é necessário provar que o autor conhecia
efetivamente a infração e que podendo ter evitado a mesma, nada vez. Em relação
ao dever de conhecimento, o agente, pelo menos, tem de ter previsto a prática
da infração e tem de ter aceite a sua realização, não fazendo nada para a
evitar.
Ainda no âmbito deste artigo,
cabe referir que este não pune a ação direta dos representantes, sendo essa a ratio do 15º.
Artigo 41º
O nº1 deste artigo prevê uma
antecipação da tutela, tanto quanto a situações de risco para a saúde e
ambiente, como também quanto a situações em que é necessário salvaguardar o
processo contraordenacional.
Há uma conexão entre esta lista e
a das sanções acessórias previstas no artigo 30º. O próprio 41º,nº2,b) confirma
esta ligação. Esta situação gera um potencial problema: as sanções acessórias
apenas se aplicam perante uma infração que implique uma sanção grave ou muito
grave. Ora, isto aplica-se também às medidas cautelares?
Não é assim. Existem situações em
que pode haver aplicação de uma medida cautelar a uma contraordenação leve,
sendo exemplo disso o artigo 40º,nº1,f). Ou seja, pode haver aplicação de
medida cautelar a qualquer processo.
Artigo 54º
Este artigo permite que, até à
decisão, quem infringiu as normas ambientais possa pagar a sua coima
voluntariamente.
O nº4 traz problemas, na medida
em que há quem defenda a sua inconstitucionalidade. Isto, porque o artigo impõe
que o pagamento voluntário equivale à condenação, o que acarreta uma diminuição
das garantias de defesa do arguido.
A que factos se deve atender, uma
vez que os autos ainda estão no início? Os factos do auto de notícia não se
revelam uma boa solução, pois ainda se podem revelar como não sendo verdadeiros.
Lourenço Nogueiro defende, assim,
que perante o pagamento voluntário, o arguido tem direito a prosseguir com os
autos com vista a apurar a sua verdadeira responsabilidade. Este refere ainda,
que os 15 dias úteis que o artigo refere se contam a partir da notificação
final ao arguido (depois da instrução), e que, para além disso, o pagamento não
tem de ser feito dentro desse prazo, desde que ainda não tenha ocorrido a tal
notificação final do arguido.
III- A Jurisidição
No âmbito das contraordenações, a
impugnação das decisões contraditórias e de medidas cautelares deve ser feita
nos tribunais comuns, como indica o artigo 4º,nº1,alínea l) in fine do ETAF.
Esta situação é criticada na
doutrina. O primeiro problema que se levanta prende-se com o artigo 212º,nº3 da
CRP que estabelece a cláusula de reserva de competência. No entanto, alguma
doutrina e o próprio Tribunal constitucional (no Acórdão 522/2008) referem que
esta reserva não é absoluta mas sim tendencial, pelo que este problema estaria
assim resolvido.
Mas as críticas continuam. É dito
que a disciplina do CPTA é mais favorável que a do CPP, devido à figura da
suspensão provisória do ato (presente no 128º CPTA)[5]e
que, apesar da proximidade entre o direito contraordenacional e o penal, a especialização
de algumas áreas do direito administrativo,
a preferência pela reconstituição natural e a defesa de interesses
públicos, fazem com que os tribunais comuns não sejam os mais aptos a lidar com
estes casos[6].
Concordo assim com o que foi dito
anteriormente, seguindo a doutrina que defende que deveria caber aos tribunais
administrativos o conhecimento do procedimento contraordenacional.
Bibliografia
Monografias:
GOMES, Carla Amado
2014: Introdução ao direito do
ambiente, 2ª Edição, Lisboa:AAFDL
SILVA, Vasco
Pereira da
2002: Verde
Cor de Direito, Lições de Direito do Ambiente, Coimbra: Almedina
Artigos:
GOMES, Carla Amado
2012: As contraordenações
ambientais no quadro da Lei 50/2006 de 29 de Agosto: Considerações gerais e
observações tópicas, in: Estudos em
Homenagem a Miguel Galvão Telles, Vol. I, Lisboa
NOGUEIRO, Lourenço
2009: Comentário à lei-quadro das
contra-ordenações ambientais , in:
Revista Portuguesa de Direito do Consumo, Nº 57
Ana do Carmo Santos Pinto. Nº20629
[1] Nem o artigo
9º nem o 66º referem sanções. Já o artigo 52,nº3, alínea a), apesar de referir
a existência de perseguição, não esclarece quanto à sua natureza.
[2]Isto,
devido a quatro fatores. Em primeiro lugar, é referido que há uma maior
reprovação social quando aplicada uma sanção penal em vez de uma sanção
administrativa. Depois, é dito que a sanção contraordenacional pode levar à
impunidade quando os infratores não tenham meios para pagar as coimas. É também
afirmado que existe uma maior cooperação penal do que contraordenacional entre
os Estados Membros. Por fim, argumenta-se relativamente à maior imparcialidade
garantida pelo processo penal.
[3] GOMES,
Carla Amado, Introdução ao direito do ambiente, 2ªEdição, AAFDL, Lisboa, 2014,
p.211.
[4] Alterada
e republicada pela Lei 89/2009 de 31 Agosto.
[5] Neste
sentido, a Professora Carla Amado Gomes. Esta defende ainda que este sistema
pode criar um paradoxo entre medidas tomadas imediatamente antes do início do
procedimento e medidas tomadas ao longo do mesmo.
[6] Neste
sentido, os Professores Maria Fernanda Palma e Figueiredo Dias.
Visto.
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