domingo, 11 de maio de 2014

Algumas reflexões sobre o Princípio da Precaução

O Princípio da Precaução no Direito do Ambiente surgiu, oficialmente (ou melhor, ganha relevância mundial)[1], através do art. 15.º da Declaração do Rio de 1992, como máxima de prevenção de riscos ambientais potencialmente causadores de danos graves e irreversíveis. Apesar da inexistência de certeza científica sobre a sua verificação e efeitos, trata-se de uma função de “polícia” do Estado (embora não esteja prevista na Constituição, nem expressamente na Lei de Bases do Ambiente) que este, numa sociedade globalizada e imersa numa teia de interligações, em vários domínios, entre Ambiente e as restantes áreas do Direito e da vida em comunidade, tem obrigatoriamente de se arrogar. Em Portugal, surgiu pela primeira vez no art. 3.º, n.º 1, al. a) da Lei n.º 58/2005, de 29/12[2], consubstanciando-se em medidas destinadas a evitar o impacte negativo de uma acção sobre o ambiente que devem ser adoptadas mesmo na ausência de certeza científica da existência de uma relação causa-efeito entre eles.
Mas, de onde deriva o Princípio da Precaução? Tal princípio é fruto da evolução da sociedade moderna, ou melhor, é destinado a combater os problemas decorrentes da crescente perda de certezas no plano científico por força do “continuum” da evolução tecnológica, consistindo em ponderar um risco mal definido, mal conhecido ou conhecido mas difícil de quantificar. É no fundo, como refere a Prof.ª Carla Amado Gomes, uma margem de segurança suplementar à prevenção, a desencadear na presença de uma simples probabilidade de risco. Visto que existe sempre a possibilidade dos danos ambientais poderem ser irreversíveis e não serem remediáveis, há que preveni-los. Não poucas vezes, são confundidos os Princípios da Prevenção (o Princípio mais importante e essencial no domínio ambiental) e o Princípio da Precaução. Ora, o primeiro assenta num grau de certeza científico, num domínio de forte possibilidade e na existência de um nexo causal entre aquele facto e a respectiva consequência ou dano. O segundo, assenta numa lógica preventiva, mesmo perante a incerteza jurídica, em prevenção de riscos hipotéticos, numa mera possibilidade ou suspeita que possa gerar um dano ambiental, assentando na presunção de in dubio, pro ambiente. Ou seja, não basta a protecção contra o perigo concreto, sendo imprescindível também a protecção contra o simples risco que, não podendo ser completamente excluído (por existir sempre a probabilidade de ocorrência de um dano), deve ser todavia minimizado.
Embora a separação dos dois princípios seja largamente utilizada, o Prof. Vasco Pereira da Silva defende que não faz sentido distingui-los autonomamente, propondo uma noção ampla de prevenção: em primeiro lugar, devido à natureza linguística dos dois princípios, que considera assentar numa identidade vocabular, integrando no conteúdo do princípio que defende, uma dimensão que abarque acontecimentos naturais ou condutas humanas susceptíveis de lesar o meio-ambiente, sejam elas actuais ou futuras; em segundo lugar, quanto ao seu conteúdo material, visto que nem sempre pode ser adequado distinguir os princípios em função de prevenção de “perigos” de causas naturais vs precaução de “riscos” provocados por acções humanas, pois as lesões ambientais podem resultar de ambos ou serem difíceis de distinguir, bem como tanto podem ser actuais como futuras (exemplo disso é o juízo de prognose que pode ser feito aquando da avaliação de impacto ambiental).
Outra questão importante neste domínio, reporta-se ao nível de prova que se requer para o Princípio da Precaução: haverá uma inversão do ónus da prova (devido à presunção de in dubio, pro ambiente), no caso, por exemplo, de um industrial que pretendesse iniciar certa actividade, de ter que provar que ela não seria prejudicial para o ambiente? É talvez por isso que o Princípio da Precaução acaba por ser, de alguma forma, radical, visto que todas as actividades comportam riscos: a ocorrência de uma prova negativa, de uma probatio diabolica, da impossibilidade de provar uma não realidade, resultaria numa carga excessiva, inibidora de qualquer nova realidade, seja em que domínio for, uma vez que o “risco zero” em matéria ambiental não existe. Ou seja, o facto de não existirem provas científicas irrefutáveis quanto à existência de um nexo de causalidade entre a lesão ambiental e os correspondentes danos, não pode justificar um abandono (sob pena de se tornar irracional), da lógica causal em matéria ambiental.
Concordo, pois, com a posição do Prof. Vasco Pereira da Silva, quando defende que na aplicação do Princípio da Precaução, este deve ser feito sempre de acordo com critérios de razoabilidade e de bom-senso. Discordo, no entanto, do ilustre professor, na sua acepção de Princípio da Prevenção em sentido amplo (tal como da Prof.ª Carla Amado Gomes que é contra a distinção entre os dois princípios), pois ambos têm âmbitos de aplicação distintos, e é por isso que entendo que a distinção entre os dois princípios deve ser feita autonomamente: os graus de certeza e de existência de uma causalidade são diferentes.
Exemplo pertinente da aplicação do Princípio da Precaução em Portugal, foi a interdição de comercialização de carne de vaca em tempo de ocorrência da chamada “doença das vacas loucas” (encefalopatia espongiforme bovina, mais conhecida pela sigla BSE), cujo primeiro caso foi detectado em 1989, motivando ainda um embargo das exportações de carne de vaca portuguesas para o resto da Comunidade Europeia entre 1998 e 2004: na altura, e no decorrer dos anos seguintes, mesmo não se sabendo as consequências que poderiam ter para a saúde dos seres humanos derivadas do seu consumo, essas carnes não foram colocadas no mercado. Mais tarde, veio a descobrir-se que foi uma decisão acertada, pois hoje sabe-se (é de senso comum), que aquela doença é transmissível ao ser humano. 
Assim, está visto que o Princípio da Precaução tem uma importância fundamental nas sociedades actuais, com maior incidência nos domínios da Saúde e Segurança Alimentar, directamente ligado, por sua vez ao domínio económico e do Direito do Consumidor, para além do meio ambiente stricto sensu, claro está. Aliás, em conjugação com o exemplo supra referido, o Princípio da Precaução tem sido aplicado, no que se refere à protecção do consumidor, sempre assegurando um elevado nível de protecção preventiva quanto aos produtos comercializados, quando os dados científicos disponíveis não permitirem uma completa avaliação do risco que representa para a saúde. É neste domínio que o Princípio da Precaução tem tido mais visibilidade e reconhecimento público, por lidar com questões mais sensíveis e de maior relevância prática no dia-a-dia do cidadão.
Quanto à responsabilidade pela aplicação do Princípio da Precaução (civil, administrativa e eventualmente, criminal), assim como a existência de eventuais compensações devidas quer pelas autoridades, quer pelos particulares se o Princípio da Precaução não tiver sido aplicado e daí tiverem resultado danos ou, pelo contrário, se tiver sido aplicado e daí resultar a sua aplicação indevida ou se provar que foi injustificada, esta tem sido matéria de densificação crescente, pela doutrina e pela jurisprudência.
Pensemos, por exemplo, numa restrição ao princípio constitucional da livre iniciativa económica privada decorrente da intervenção da administração, inviabilizando um certo projecto de um particular…como tem sido entendido o Princípio da Precaução na prática dos nossos tribunais? Qual tem sido então o papel da jurisprudência nacional, a sua intervenção e a interpretação que faz da aplicação do Princípio da Precaução e da possível inversão do ónus da prova? Os dois Acórdãos seguintes, por serem tão elucidativos, merecem transcrição:
- No Ac. do TCA Sul de 07-03-2013: quanto ao enquadramento dogmático do Princípio da Precaução, “(…) até ao extremo oposto que assimila as concretizações da precaução a “sound bites” configurando-as como “face perversa da precaução”, e que “(..) nada que uma geometria variável das prevenção, sustentada no princípio da proporcionalidade, não contemple. (..)”,  advogando-se a necessidade de “(..) abandonar a perspectiva perigosamente simplista da precaução e colocar a ênfase numa atitude de prevenção equilibrada (..)". Afastando ainda o Tribunal a admissibilidade da inversão do ónus da prova: no domínio procedimental por regra cabe ao agente económico interessado na emissão do acto autorizativo a prova de que a actividade de risco para bens jurídicos constitucionalmente tutelados que pretende desenvolver no mercado se situa dentro dos limites de conformidade normativa – técnica e jurídica - aplicáveis ao caso em concreto. Como nos diz a doutrina, “(..) A interpretação tradicional exige aos que pretendem defender o ambiente – o ofendido, a Administração – a prova de que uma actividade causa perigos ou danos. O princípio da precaução vem dizer que devem ser os potenciais agressores a demonstrar que uma acção não apresenta riscos sérios ou graves para o ambiente, uma vez que são eles que pretendem alterar o status quo ambiental (..)”, sendo que a doutrina realça que se coloca “(..) a questão de saber, primus, se constitui uma regra aplicável sempre que exista um risco ambiental ou se depende da sua gravidade e irreversibilidade; secundus, se é necessário demonstrar a inocuidade da relação ao ambiente ou basta a mera plausibilidade de não ocorrência de efeitos ambientais adversos. (..)” Concluindo que todavia, esta transposição do quadro procedimental para o contencioso jurisdicional da técnica da inversão do ónus de prova não é admissível (…).”.
- No Ac. do TCA Sul de 25-11-2010: Seria exigir do autor de tal acto que não só fizesse prova de que o risco se situa nos limites legalmente admissíveis mas, ainda, que demonstrasse a completa ausência desse risco, obrigando-o, para além dos limites do razoável, a uma diabolica probatio, com violação do direito de acesso à justiça e do princípio do processo equitativo (art. 20/1 e 4 CRP).  Assim, deve aquele princípio da precaução ser entendido como mera orientação política dos Estados, que o devem ter em conta nas suas opções políticas e legislativas. (…) à face do nosso ordenamento jurídico, o princípio da precaução não foi adoptado como critério de decisão da prova, não podendo com base na mera falta de certeza da não produção de danos ambientais ou para a saúde pública o julgador concluir pela existência de receio de produção de danos ambientais e para a saúde pública, de difícil reparação ou irreversíveis, quando não se demonstra positivamente, mesmo de forma sumária, a existência de uma probabilidade séria de eles virem a ocorrer. Trata-se de uma opção legislativa discutível, em termos de política legislativa, mas que se justificará pela ponderação da necessidade de prossecução de outros interesses públicos, que se entendeu não dever ser obstaculizada por meros receios de danos eventuais ou hipotéticos, que não se demonstra com grau de probabilidade séria que possam vir a ocorrer. 
Na jurisprudência comunitária cabe referir o Acórdão Pfizer Animal Health S.A. contra o Conselho, de 11-09-2002 e o seu acolhimento expresso do princípio da precaução.[3]
Concluindo, quanto ao papel do Princípio da Precaução, não restam dúvidas: é e será um princípio basilar do direito ambiental assim como o Princípio da Prevenção o é, quer voluntariamente, quer involuntariamente: os Estados Modernos, auxiliados pelo Direito, “correm” atrás de tecnologias de ponta que circulam a uma velocidade estonteante e não conseguem “controlar” toda uma intensa e extremamente densificada teia de fluxos populacionais e de relações económicas transnacionais (é uma tarefa quase, se não mesmo impossível). Mas, para resolver e antecipar/prevenir os problemas que surgem na vida em sociedade está cá o Direito e, é por isso, que uma das formas encontradas para tentar conseguir uma “minimização” das lesões ambientais terá que ser, se assim me é permitido, a aplicação do Princípio da Precaução de acordo com um “cepticismo moderado”: no mundo em que vivemos, globalizado, uma má actuação (quase sempre de competência de entidades públicas) num certo local, região ou país, poderá ter consequências ou provocar danos no outro lado do mundo. E isto é cada vez mais premente quando pensamos nos variados casos epidémicos globais que nos atingiram nas duas últimas décadas: a “doença das vacas loucas” (ou BSE), a “gripe suína” (Gripe A ou H1N1) ou a “gripe aviária” (ou H5N1), entre outros. Porém, também é urgente a sua aplicação no meio ambiente stricto sensu: se pensarmos que o aquecimento global e a emissão de gases de estufa para a atmosfera potencia o famoso aquecimento global e consequências na subida dos níveis da água dos mares ou, mais controvertidamente, se será causa de maior número de ocorrências de catástrofes naturais (como é o caso dos furacões, de cheias ou de fenómenos de seca, quer ocorram, quer sejam previsíveis que aconteçam ou se agravem). Repescando a posição do Prof. Dr. Vasco Pereira da Silva, embora discordando da acepção do ilustre Professor (quando defende uma noção ampla do Princípio da Prevenção), é essencial que imperem critérios de razoabilidade e de bom-senso. Todavia, o Princípio da Precaução, continua a ser o mais controverso dos princípios ambientais: é um dos princípios basilares do Direito do Ambiente juntamente com o Princípio da Prevenção, tem uma função cautelar e preventiva (ainda que indirectamente) tão ou mais importante que este (por ser mais “delicada”) mas, é e continuará a estar envolto em interesses e polémicas económicas, ficando muitas das vezes refém e dependente de decisões de carácter político (quase exclusivamente estadual), nomeadamente no que se refere à legitimidade para possíveis restrições, os seus fundamentos (que por vezes são facilmente atacáveis por serem considerados frágeis, embora seja necessário existir meios de defesa e impugnação de decisões para prevenir abusos) e a aplicação de mecanismos de ressarcimento (p. ex. de responsabilidade civil).

Bibliografia:

- ANTUNES, Tiago
2003: O ambiente entre o direito e a técnica, trabalho apresentado na Faculdade de Direito de Lisboa, AAFDL, Lisboa, pp. 67-69

- ARAGÃO, Alexandra
2010: Dimensões europeias do princípio da precaução, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Porto, pp. 251-285

- GOMES, Carla Amado
2009: A protecção do ambiente na jurisprudência comunitária: uma amostragem, in Themis / FDUNL, Coimbra, pp. 151-156

- MARTINS, Ana Gouveia
2002: O princípio da precaução no direito do ambiente, AAFDL, Lisboa, pp. 53-98

- MIRANDA, Beatriz Conde
2008: Princípio da precaução e do poluidor pagador: uma análise económica dos instrumentos protectivos ambientais, provas complementares de doutoramento em Ciências Jurídicas, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa, pp. 1-12

- NETO, Gassi Roberto
2008: Princípio da precaução e protecção ao consumidor, in Revista Portuguesa de Direito do Consumo, Coimbra, pp. 49-67

- SILVA, Vasco Pereira da
2005: Verde Cor de Direito, Almedina, Coimbra, pp. 66-73, 153 e 154

- SILVA, Sabrina Batista Barroso da
2009: O princípio da precaução no direito internacional: efectivação da protecção ambiental prévia, relatório de mestrado em Ciências Jurídico-Internacionais, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa, pp. 23-31

- SOUZA FILHO, Levi Sottomaior de
2009: O princípio de precaução na sociedade de risco e sua aceitação na Comunidade Europeia e na OMC face aos reflexos ambientais e económicos envolvidos, relatório de estágio de mestrado em Direito Económico do Ambiente, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa, pp. 11-34



[1] Embora, na verdade, a sua primeira aparição de cariz global se dê através da Resolução 44/225 de 1989 da ONU, sobre a pesca de arresto, quando se decidiu pela implementação de uma inversão do ónus da prova em prol da conservação dos peixes, embora existam várias outras disposições normativas dispersas. No entanto, a primeira legislação a introduzir o princípio da precaução foi a Environmental Protection Act sueca de 1969. Destaca-se ainda a Resolução do Conselho Europeu de Nice relativa ao Princípio da Precaução (7-9 de Dezembro de 2000), pelo aprofundamento deste princípio.
[2] Também conhecida como Lei da Água.
[3] Em que a Comissão realizou uma ponderação de interesses em que a salvaguarda da saúde humana preferiu ao interesse económico das empresas que comercializavam aqueles aditivos alimentares.


Filipe Braz Mimoso, n.º 21121

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