domingo, 27 de abril de 2014

O princípio da precaução


1- Introdução:

O princípio da precaução visa a proteção do ambiente, impedindo a intervenção do Homem em situações em que não há certezas da parte da ciência quanto à produção de danos ambientais e quanto ao nexo de causalidade entre a intervenção e os próprios danos.

Este princípio tem a sua origem em 1987, com o Protocolo de Montreal à Convenção de Viena para a proteção da camada de Ozono e com a declaração de Londres. Depois destas situações é de realçar a presença deste princípio na Declaração do Rio de 1992.

A precaução está intimamente ligada ao conceito de “Sociedade de risco”. Numa sociedade onde a incerteza é constante e o risco nunca é zero,até onde é tolerável o grau de incerteza quanto à motivação das ações que visam a proteção ambiental?

Este “post” tem como objetivo a análise do conteúdo e da aplicabilidade deste princípio, com vista a uma opinião fundamentada quanto à sua utilidade e autonomia.


2- Antes de mais, cabe fazer a distinção da prevenção (artigo 66º, nº2, a) CRP):

Este princípio pode ser autonomizado, segundo alguma doutrina[1], do princípio da prevenção. O princípio da prevenção atua quando haja um consenso da comunidade quanto à ocorrência de um dano. O princípio da precaução atua no domínio da incerteza científica, atuando cronologicamente antes e em mais domínios que o da prevenção.

A Professora Alexandra Aragão refere, neste âmbito, que o princípio da precaução é proativo e o da prevenção reativo[2].

Ainda segundo a mesma Professora, com a adoção deste princípio a nível europeu e perante uma crescente consciencialização do mesmo em Portugal, pode-se falar numa mudança de paradigma no que toca à evolução da simples prevenção para a precaução.

A doutrina diverge muito quanto à utilidade e aos benefícios deste princípio, pelo que cabe assim analisar o seguinte ponto:


3- Este é um princípio perigoso ou existem mitos acerca do mesmo?

Em primeiro lugar, antes desta análise, cabe apenas frisar que este é um princípio rodeado de alguma incerteza e instabilidade a nível dogmático, na medida em que pode ser analisado de acordo com variados pontos de vista.

Cabe a cada Estado, a cada comunidade,formular as suas próprias diretivas, no que concerne à relação entre a certeza dada pela ciência e a proteção do ambiente.

Este princípio, sobretudo quando concebido na sua aceção mais ampla, ou mais radical se se quiser, acarreta alguns “perigos”, que devem ser suavizados.

A Professora Carla Amado Gomes elenca até algumas das áreas onde o princípio da precaução pode provocar problemas, se levado em conta de uma forma demasiado ampla: sociológicos (por vezes é dada prevalência, à luz deste princípio, ao ambiente, sacrificando assim as ideias da comunidade); políticos (os Estados, em nome do ambiente, veem reduzidos os seus poderes de soberania quanto à decisão ambiental); económicos (este princípio pode levar a uma estagnação do crescimento económico de um país, paralisando setores de produção); jurídicos (os juristas têm de lidar, neste âmbito, com opiniões estritamente científicas e há ainda toda a problemática da prova) ; tecnológicos (este princípio pode levar à paralisação da tecnologia); científicos (este princípio evidencia ao máximo as incertezas científicas e as incapacidades da ciência para a oferecer certas explicações e certos esclarecimentos); e, por fim, ecológicos (por vezes, o uso deste princípio pode distorcer certos factos, na medida em que uma intervenção ambiental danosa num certo local, pode trazer as melhores consequências num outro) [3].

Todos estes “perigos” levam, na doutrina desta Professora, ao entendimento de que “a precaução não é mais do que o aprofundamento do princípio da prevenção, modulado pelo princípio da proporcionalidade em função da ponderação entre aquilo que se protege e a forma como se protege”[4]

No entanto, a doutrina não é unânime neste aspeto. A Professora Alexandra Aragão refuta alguns destes perigos atribuídos ao princípio da prevenção.

Este princípio, no que toca à sua relação com a ciência, ajuda o decisor no que toca a superar “lacunas” da ciência. Não só impõe uma avaliação do risco antes da decisão por alguma medida, como também, impõe que, após a tomada de decisão, a ciência ajude na fundamentação da vigência ou não vigência da decisão. Ou seja, a ciência, em especial, os estudos e dados científicos, andam de braço dado com as medidas tomadas à luz da lógica da precaução e constituem a base para a verificação e manutenção das decisões ambientais.

Quanto ao suposto impedimento do progresso provocado por este princípio, este é também um argumento falacioso. Isto, na medida em que a precaução apenas afasta um desenvolvimento com base em tendências economicistas que não olham às consequências. Esta visa bastantes decisões de conteúdo positivo, em que há um incentivo ao desenvolvimento, não visa apenas a fundamentação de comandos negativos, de abstenção. No fundo, este princípio impõe a seguinte meta: “na dúvida, põe em prática tudo o que te permita agir melhor”[5].

Esta Professora refuta ainda que o princípio da precaução promova a irracionalidade e o medo, sendo que são os critérios que apelam a pensamentos do tipo custo-benefício (critérios economicistas) que originam conclusões erróneas quanto ao ambiente.

Por fim, este princípio não visa a ideia do risco zero. Esse é um objetivo ingénuo e descontextualizado, e não é o objetivo da análise precaucionista. A ideia é promover um desenvolvimento que seja sério, proporcional e que vise a sustentabilidade. Hoje em dia, vivendo numa sociedade de risco não existe risco zero. O importante é justificar o porquê do desenvolvimento de certas atividades que comportam algum risco.

Tomando posição:

Mesmo a doutrina mais cética quanto a este princípio, como é o caso da Professora Carla Amado Gomes, reconhece que este impõe certos objetivos ou deveres, se assim se quiser, que permitem que sejam minorados os tais efeitos negativos anteriormente referidos.

Existem deveres de promoção da investigação científica, de produção e divulgação de informação ambiental com vista à participação pública no procedimento de decisão ambiental; de criação de normas que promovam a proteção ao ambiente, de apoio à implementação de medidas cautelares com vista a evitar certos danos, entre outros.

Na minha opinião, uma vez que até uma doutrina mais cética reconhece que o princípio da Precaução é benéfico (desde que prosseguido por certos caminhos) não há razão para recear a livre utilização este princípio. Este deve é ser adotado de forma autónoma e o mais racional possível. Se levado a cabo de um modo sério e informado, este é um princípio altamente vantajoso quanto à defesa dos valores ambientais e que não é alheio aos meios que utiliza para atingir os seu fins.

 

4-A aplicação do princípio da precaução

É necessária uma aplicação racional e ponderada deste princípio, com vista a justificar e a enaltecer a sua autonomia e os seus contributos para o ambiente.

Quanto a esta matéria irei seguir o pensamento da Professora Alexandra Aragão.

Este princípio tem aplicação, para além das situações de política ambiental, em situações em que podem estar em causa bens jurídicos a proteger em matéria de ambiente, de segurança pública, de saúde pública, de segurança dos consumidores e de direitos fundamentais.       

4.1-Pressupostos de aplicabilidade:

Cabe referir, a este propósito, alguns requisitos que devem ser preenchidos para uma correta aplicação deste princípio. Fala-se neste âmbito, em dois pressupostos: -É necessário existirem riscos graves; - É necessário que não existam certezas (na medida de incertezas significativas) no que toca aos riscos.

Quanto ao primeiro:

A gravidade dos riscos pode ser analisada por um prisma objetivo, através de critérios dados pela doutrina e, também, pela lei, por exemplo, nos termos do direito comunitário, a Diretiva 85/337 de 27 Julho estabalece critérios quanto ao Regime da AIA.

Neste âmbito, é importante dizer que, em Portugal, a irreversibilidade dos danos não é um pressuposto para a aplicação deste princípio, sendo apenas um dos critérios que ajudam a aferir a gravidade do risco.

Deve-se também olhar para esta questão através de critérios subjetivos. É nesta medida que se deve observar os riscos que são cientificamente e socialmente excessivos. É importante frisar que estas duas vertentes se complementam, ou seja perante uma menor certeza científica quanto ao facto de o risco ser elevado, deve haver uma maior observância do pensamento social quanto ao mesmo.

Depois de se estabelecer que um determinado risco é grave, através de critérios objetivos e subjetivos, é importante aferir da incerteza do mesmo. É necessário, para aplicar o princípio da precaução que um risco seja, não apenas grave, mas altamente incerto.

Antes de mais, a incerteza tem de ter um determinado conteúdo. Podemos estar perante uma incerteza quanto à proveniência dos danos, perante uma situação em que a incógnita existe quanto à natureza ou gravidade dos danos, ou ainda, perante uma situação de incerteza quanto à própria verificação dos danos. Quanto a esta última situação, para se ponderar a aplicação do princípio da precaução, é importante que existam, pelo menos, “motivos razoáveis”[6] para suspeitar da produção de danos.

Esta incerteza pode advir de variadas fontes: Pode-se falar de uma incerteza ontológica, quando esta é originária da natureza dos sistemas ambientais, de uma incerteza epistemológica, quando são os dados ambientais que são insuficientes, demasiados ou contraditórios, e de uma incerteza hermenêutica, que decorre da anterior, isto é, a incerteza dos dados reflete-se em perceções diferentes dos acontecimentos.

Estes pressupostos permitem a aplicação do princípio da precaução como um princípio autónomo mas marcado pela razoabilidade e pelo bom senso.

4.2-As medidas a tomar

Perante o preenchimento dos pressupostos anteriormente referidos que decisões, medidas tomar?

Em primeiro lugar cabe frisar que, ao contrário das medidas tomadas com base no princípio da prevenção, estas não são medidas que se esgotam em si mesmas, procurando certos objetivos mediatos.

A tomada de decisão quanto às medidas em causa depende do risco em causa e do dano que se adivinha.

O mais importante neste âmbito é que as medidas possuam carácter de provisoriedade e sejam proporcionais ao risco.

Podem ser “medidas de conteúdo positivo ou negativo, mais ou menos gravosas, mais ou menos urgentes, mais ou menos reactivas, mais vocacionadas para o controlo do risco objetivo ou do risco subjetivo”[7]


5- Conclusão:

A precaução é autónoma da prevenção e desempenha um importante e equilibrado papel na defesa do meio ambiente.

Se utilizado quando necessário e de forma correta, este é um princípio que não é isolador da decisão de proteção ambiental em relação ao que é alheio à mesma.

Fazendo um juízo correto de aplicação do princípio, através de pressupostos de aplicabilidade e de ponderação de medidas, este é altamente benéfico, tanto para o meio ambiente em si mesmo, como para as relações que se estabelecem entre o ambiente e outras áreas que lhe são próximas.

A precaução demonstra-se então eficaz e necessária e deve ser incrementada.

 


Bibliografia:

Consultada:

ARAGÃO, Alexandra

2008: Princípio da Precaução, manual de instruções, in Revista CEDOUA, nº 2.


MIRANDA, Beatriz Conde

2009 :Princípio da precaução e do poluidor pagador : uma análise econômica dos instrumentos protetivos ambientais,  Lisboa  


SANTOS, Cláudia, DIAS, Figueiredo, ARAGÃO, Alexandra

1998: Introdução ao direito do ambiente, Lisboa: Univerdidade Aberta.

 
SILVA, Vasco Pereira da

2002: Verde Cor de Direito, Lições de Direito do Ambiente, Coimbra: Almedina



Citada:

ARAGÃO, Alexandra

2013: Aplicação Nacional do Princípio da Precaução in Colóquios 2011-2012 (Associação dos Magistrados da Jurisdição Administrativa e Fiscal Portuguesa)

 

GOMES, Carla Amado

2005: Dar o duvidoso pelo (in)certo? Reflexões sobre o “Princípio da Precaução””, in Textos Dispersos do Direito do Ambiente, Lisboa: AAFDL.

 



[1] Em sentido contrário, Carla Amado Gomes e Vasco Pereira da Silva defendem uma conceção ampla do Princípio da prevenção que engloba o da precaução.
[2] Alexandra Aragão, “Aplicação Nacional do Princípio da Precaução” in Colóquios 2011-2012 (Associação dos Magistrados da Jurisdição Administrativa e Fiscal Portuguesa), 2013, p. 5 in Nancy J. Meyers, Carolyn Raffensperger, Precautionary tools for reshaping environmental policy, the MIT press, Cambridge, Massachusetts, 2006.
[3] Elenco presente em Carla Amado Gomes,  “Dar o duvidoso pelo (in)certo? Reflexões sobre o “Princípio da Precaução””, in Textos Dispersos do Direito do Ambiente, Lisboa AAFDL, 2005, pp 152 ss.
[4] Carla Amado Gomes, Dar o duvidoso pelo (in)certo? Reflexões sobre o “Princípio da Precaução”, p.157.
[5] Alexandra Aragão, A aplicação Nacional do Princípio da Precaução, p. 25, in Traitement Juridique du risque et principe de précaution, in: Actualité Juridique Droit Administratif, nº08, 3 Mars, 2003, p.362.
[6] Alexandra Aragão, Aplicação Nacional do Princípio da Precaução, p.11.
[7] AlexandraAragão, Aplicação Nacional do Princípio da Precaução, p 13.
 
 
 
Ana do Carmo Santos Pinto, Nº 20629

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